Cinema é uma linguagem de comunicação mágica capaz de nos envolver de tal modo que as emoções vividas na tela são projetadas em nossos sentimentos, provocando sensações que marcam cada um de forma particular. Ao assistirmos um filme, assimilamos a experiência vivida naquela sala escura e por isso o cinema é uma arte poderosa, fonte de entretenimento, mas também capaz de influenciar as pessoas de muitas maneiras.
O último filme que assisti tem um final apoteótico: um grupo de pessoas está em perigo e precisa escapar de uma situação que pode lhes custar a vida, tudo leva a um final trágico. Entre eles há um cujo trabalho é justamente resgatar pessoas de situações difíceis como esta, o nosso herói do filme, e ele executa seu plano que necessita de uma combinação de coisas para dar certo, mas a qualquer momento podem ser descobertos e capturados. A sequencia final passa por um continuo frenético de situações tensas que culminará na fuga ou na morte, mas eles se salvam, todos comemoram, se abraçam, a informação de que estão salvos se propaga e há comemoração em outros locais onde também aguardavam o desenrolar. Muita gente comemorando, se abraçando e os heróis, no fim, são premiados com medalhas e troféus. Quem já não assistiu a um filme assim? Conseguem imaginar de qual estou falando?
Já perdi as contas de quantos vi que se encaixariam nesta descrição, o que muda é sempre o malvado da história, por vezes são os comunistas, ou extraterrestres, podem ser os terroristas, só os mocinhos são os mesmos, os americanos, ele pode ser um cara comum, um policial, um bombeiro, um agente da CIA ou o próprio presidente. Esse tipo de filme, geralmente, tem um objetivo escondido por trás da história que é atribuir a noção de que existem bons e maus, que os americanos estão do lado bom e irão salvar a todos e do outro lado está o inimigo malvado, implacável, aterrorizante, destruidor que vai acabar com nossa vida ou com o mundo como o conhecemos.
O filme especificamente do qual estou falando é Argo, de Ben Affleck. Li uma matéria que dizia que ele gostaria de tirar de si o estereótipo do mocinho de filme de ação que o marcou por Armageddon. Argo tem boas críticas, é elogiado e realmente muito bem feito, mas tenho minhas dúvidas da diferença dele para um outro filme de mocinho e bandido que o ator já tenha feito em sua carreira, a não ser pelo fato desse ser baseado em uma história real e não simplesmente extraído da pura ficção. Tenho que concordar que o filme é muito bem caracterizado, a reprodução de algumas imagens e acontecimentos impressiona, quem for ver não se levante da cadeira antes da hora que vão mostrar as imagens verdadeiras em contraposição com as feitas para o filme.
No filme, Bem Affleck é o agente da CIA Tony Mendez que se infiltra no Irã para salvar alguns funcionários que fugiram da embaixada americana em Teerã durante a sua invasão após a Revolução Iraniana de 1979, enquanto os outros funcionários eram feitos reféns, mantidos sob cárcere durante 444 dias. Portanto, ele é o mocinho americano que salvará quem está em perigo dos malvados iranianos islâmicos fanático.
Eu vejo este filme com um viés totalmente político. Hoje, os inimigos não são mais os comunistas, mas os terroristas, principalmente se forem mulçumanos. Convenientemente este filme foi rodado enquanto está em jogo a questão nuclear iraniana, o governo norte-americano não admite o direito do Irã desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos e o acusa de estar desenvolvendo o programa para fins militares, embora o Irã tenha assinado o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), ter aceitado as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica e nada ter sido provado. Aliado a isso tem Israel, que é inimigo público declarado do Irã e o ameaça de invasão se não parar imediatamente seu programa nuclear. Vale ressaltar que Israel não é signatário do TNP e conhecidamente possui armas nucleares, mas o nega, mesmo contra as evidências, além de receber três bilhões de dólares dos EUA por ano em financiamento militar e ter um fortíssimo lobby que pressiona os EUA a tomar posições favoráveis a ele. Esse lobby é feito por instituições como a AIPAC que se auto declara em sua home page “America’s pró Israel lobby”, que dentre outras ações, atua dando dinheiro para as campanhas presidenciais americanas. Outras formas conhecidas de lobby são através do convencimento da opinião pública através da mídia, cinema, eu diria até livros, best sellers. Com todos estes indícios é de se suspeitar que o filme tenha esta intenção.
O filme trás o expectador para dentro da história, o coloca no contexto e tenta criar uma afinidade entre eles e as vítimas, os funcionários reféns, através de closes em seus rostos com suas expressões faciais e contando um pouco de sua história. Já os iranianos não tem o rosto mostrado em detalhes, somente poucas vezes quando estão executando más ações e como parte do clímax final (quem ver o filme entenderá a necessidade disso para a sequência perigosa pela qual os personagens passam a caminho da libertação), mas ao longo de todo filme eles são mostrados como uma massa histérica, enlouquecida e fanática, eles tem de parecer bem malvados. Em uma das sequências, após descreverem quem são cada um dos funcionários americanos que devem ser salvos, alguns agentes da CIA fazem uma referência aos iranianos, com uma frase encaixada no roteiro, depreciando-os dizendo que se tiverem a mínima capacidade de fazer uma conta simples logo darão falta dos funcionários fugitivos. Os únicos iranianos que tem realmente alguma característica mostrada é a governanta da casa do embaixador canadense porque dá uma pequena contribuição à fuga das vítimas e o Xá deposto Reza Pahlevi, motivo da crise dos reféns, o qual é referido por mais de uma vez como um velho coitado com câncer.
O Irã tem uma rica história de mais de três mil anos, já foi um grande império, teve governantes cujos nomes ainda reverberam na história, é um dos berços da civilização que hoje conhecemos, mas também tem uma triste história de dominação e exploração pelo imperialismo das grandes potências e nem uma parte disso é mostrado no filme. O Irã é um país de cultura complexa, de um povo culto e nada além de uns pequenos fragmentos de sua história que não dão conta de mostrar quem é este país é apresentado no filme. A colagem de cenas da revolução que perpassam todo o filme não vem acompanhadas de seu contexto e isoladas, sem a história por trás, fora do acontecimento real só reforçam a imagem estereotipa do iraniano fanático que se quer que acredite povoar aquele país. O que o Irã quer e está exigindo com aquela revolução do filme, com outras que aconteceram antes e com a insistência em seu programa nuclear atual é ter o direito, mais do que justo, de decidirem por si só o seu próprio destino e o modelo que querem adotar para governar suas vidas, isso se chama autodeterminação de um povo.
Os norte-americanos gostam de propagar a crença de que são um país livre e democrático, mas não admitem que se pense diferente, para os EUA a liberdade vai até onde eles determinam que seja a forma correta de pensar e viver, se não for de seu modo são malvados, são inimigos a serem combatidos. Com os comunistas foi assim, eles tinham um modo diferente de se autogovernar e isso era inadmissível, contra Cuba foi assim, uma pequena ilha que até hoje é tida como inimiga e com o Irã estão fazendo o mesmo. Mas eles vão lutar pelo seu direito de pertencer ao grupo dos não alinhados e pelo direito a sua autodeterminação, mesmo que a mídia ocidental os demonize, mesmo que façam filmes, mesmo que lhe imponham sanções e mesmo que quando formos ao cinema, que no final torçamos pelos mocinhos americanos de Argo e que eles venham a ganhar mais um troféu, o Oscar.
Para Saber mais:
Livro: Todos os Homens do Xá: o Golpe Norte-Americano no Irã e as Raízes do Terror no Oriente Médio – Stephen Kinzer
Livro: As Mil e Uma Noites Mal Dormidas: a Formação da República Islâmica do Irã - Murilo Sebe Bom Meihy
Livro: O Mundo Muçulmano – Peter Demont