sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Cinema: “Quero Morrer Lúcido e de Olhos Abertos”

Assisti ao documentário José e Pilar o que me deixou imensamente feliz. Como é bom ir ao cinema e assistir alguma coisa que te acrescenta algo além da pura e simples diversão! Talvez eu seja um pouco séria e sisuda, mas normalmente escolho os filmes pelo conteúdo.

José e Pilar foi rodado entre os anos de 2006 a 2008, na época José Saramago estava com 85 para 86 anos e os cinegrafistas acompanharam sua rotina e compromissos durante o período da gravação. Nunca fui fã de carteirinha do autor, mas sempre o admirei por seus livros e por suas opiniões, mesmo que não partilhe plenamente delas, ainda assim, de modo emblemático, compartilhava com muitas de suas posições.

O filme mostra um Saramago maduro, lúcido, ativo, incansável e consciente de já estar vivendo seus últimos dias e esta idéia perpassa todo o enredo. Isso não ocorre de forma triste nem melancólica, mas com profundas reflexões sobre a vida e a morte e muitas das vezes de forma irônica, como quando ele diz: “estou com 85 anos já é hora de começar a pensar no futuro”. Frase dita no contexto de sua descrença na existência de Deus e numa vida após a morte. Idéia, inclusive, que é onipresente em todo seu discurso, seja afrontando diretamente a existência de Deus ou disfarçada no discurso.

“(...) basta que recordemos a peremptória afirmação daquele famoso jesus da galiléia que, nos seus melhores tempos, se gabou de ser capaz de atribuir e reconstruir o templo entre a manhã e a noite de um único dia. Ignora-se se foi por falta de mão-de-obra ou de cimento que não o fez, ou se foi por ter chegado à sensata conclusão de que o trabalho não merecia a pena, considerando que se algo se vai destruir para construí-lo outra vez, melhor será deixar tudo com estava antes.”
Trecho do livro A Viagem do Elefante

“E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor dos nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também, o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro dirá,”
Trecho do livro Caim, no qual se refere à passagem bíblica em que Deus pede à Abraão que entregue o próprio filho, Isaac, em sacrifício

“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.”
Trecho de Caim

Talvez por não acreditar em uma existência após a morte tenha vivido tão intensamente e dado imenso valor a cada instante de sua vida. Sua vitalidade aos 85 anos impressiona! Empenhado em comparecer à sua agenda frenética, mesmo que por muitas vezes isso o aborreça, mas se faz presente. Ele poderia simplesmente não ir, se esconder atrás de sua idade, de seu cansaço e de sua já consolidada consagração, mas não, estava ele lá, rodando o mundo, viajando de país em país, dando entrevistas, autógrafos, falando com as pessoas, circulando entre elas, mantendo-se próximo à essência do ser humano e às coisas simples da vida que lhe é peculiar e sempre presente em seus atos e nas histórias contadas.

“(...) irão dar-lhe muitas palmas, irá sair muita gente à rua, e depois esquecem-se dele, é assim é a lei da vida, triunfo e olvido,”
Trecho do livro A Viagem do Elefante

“(...) praticamente o mundo só agora foi inaugurado, faltam-nos ainda muitas palavras para que comecemos a tentar dizer quem somos e nem sempre daremos com as que melhor o expliquem,”
Trecho do livro Caim

Durante o período em que o documentário foi rodado José Saramago adoeceu, um pouco pela idade, um pouco pela rotina, um pouco pela fragilidade de nosso corpo, mas ainda assim continuava invencível e presente em seus compromissos, mesmo que fosse numa cadeira de rodas, respirando mal, sem conseguir falar o suficiente, até que um dia sucumbiu.

Nessa época ele havia começado a escrever A Viagem do Elefante e teve medo de morrer sem concluir seu livro, na verdade o medo era de não estar mais aqui, de não mais pensar, analisar, pensar, produzir e viver, não era por causa do livro, mas da vida em si, como ele mesmo disse: “a morte é não mais estar”. O livro era apenas o pretexto. Ficou internado um longo tempo, isolado, definhou e reviveu: mais forte, com mais sede de viver e impressionantemente, mais maduro. Terminou seu livro, voltou a viajar ao redor do mundo, autografou, deu entrevistas e escreveu ainda mais um livro, Caim.

Com uma presença tão ativa, não é por acaso que diz: “quero morrer lúcido e de olhos abertos”. Não só sua produção literária foi “lúcida” e rica, mas sua presença, opiniões e posições na esfera pública, sempre esteve comprometido com uma visão crítica do mundo, defendendo idéias, muitas das quais polêmicas, indignado diante de injustiças e desigualdades econômicas e sociais, não havendo distinção entre o escritor e o cidadão e não medindo palavras para dizer o que pensava.

“Se amanhã me disserem que vão globalizar o pão não encontrareis globalizador mais entusiasta que eu. E se me disserem – e fazem-no – que vão globalizar tudo quanto milhares de milhões de seres humanos estão necessitando para viver dignamente, então asseguro-vos que me vereis convertido num seu fanático. Mas a globalização está a acrescentar miséria à miséria, fome à fome, exploração à exploração.”
Trecho retirado de seu Blog, Outros Cadernos de Saramago

Pilar Del Rio, esposa de Saramago, não fica atrás. Mulher forte, feminista aguerrida é capaz de defender Hillary Clinton só por ter se tornado uma personalidade respeitada no mundo e para defender este ponto de vista discute com seu esposo que desaprova a americana por suas posições políticas. Outra cena marcante é uma entrevista que Pilar concede a um jornalista português sobre seu cargo de presidenta da Fundação José Saramago. A polêmica é sobre a letra a no final da palavra presidenta, o entrevistador, cheio de preconceitos, insiste em chamá-la de presidente, na qual retruca imediatamente com a frase que foi a manchete da entrevista: “sou presidenta porque sou mulher”.

Um dos destaques do documentário é a cena em que ele assiste, ao lado de Fernando Meirelles, a uma exibição especial do filme Blindness, baseado no seu romance Ensaio Sobre a Cegueira. O expectador pode ver a reação do escritor ao ver o seu romance de maior sucesso na telona do cinema.

"[Ele] dizia que a morte é simplesmente a diferença entre o estar aqui e já não mais estar. Combatia as religiões com fúria, dizia que elas nos embaçam nossa visão. (...) Mesmo assim não consigo deixar de pensar que adoraria que neste momento ele estivesse tendo que dar o braço a torcer ao ser surpreendido por algum outro tipo de vida depois desta que teve por aqui. (...) A lucidez naquele grau é um privilégio de poucos, não consigo escapar do clichê, mas definitivamente o mundo ficou ainda mais burro e ainda mais cego hoje."
O diretor Fernando Meirelles, no dia da morte do escritor

Em 2010, infelizmente, perdemos esse grande escritor da língua portuguesa, premio Nobel de literatura, figura controversa, de opiniões contundentes, que sempre era chamado a levantar sua voz sobre as questões de nosso tempo. Com certeza foi um grande homem que contribuiu para a formação e reflexão de nossa sociedade e como ele mesmo disse sobre o ser humano: “no fundo, todos temos necessidade de dizer quem somos e o que estamos fazendo, a necessidade de deixar algo feito, porque esta vida não é eterna e deixar coisas feitas pode ser uma forma de eternidade”. Ele morreu lúcido, não sei se com os olhos abertos, mas com certeza suas idéias e ideais permaneceram, estão aí cada vez mais lúcidos e sempre de olhos abertos.

“Não somos robôs nem pedras falantes (...) em toda a verdade humana há sempre algo de angustioso, de aflito, nós somos, e não estou a referir-me simplesmente à fragilidade da vida, somos uma pequena e trêmula chama que a cada instante ameaça apagar-se, e temos medo, acima de tudo temos medo.”
Trecho do livro Ensaio Sobre a Lucidez


Um pouco mais sobre Saramago

Blog do Saramago, hoje atualizado pela sua fundação:

Fundação José Saramago:

Blog da Viagem do Elefante:

Notícias que valem a pena ler:

 
 
 
 
 
Obras publicadas:
  • Terra do Pecado, 1947
  • Manual de Pintura e Caligrafia, 1977
  • Levantado do Chão, 1980
  • Memorial do Convento, 1982
  • O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984
  • A Jangada de Pedra, 1986
  • História do Cerco de Lisboa, 1989
  • O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991
  • Ensaio Sobre a Cegueira, 1995
  • Todos os Nomes, 1997
  • A Caverna, 2000
  • O Homem Duplicado, 2002
  • Ensaio Sobre a Lucidez, 2004
  • As Intermitências da Morte, 2005
  • A Viagem do Elefante, 2008
  • Caim, 2009

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